Filosofia e Crise



Anteriormente, em um post denominado "O filósofo como Homo Crisis", citei um belíssimo texto de J. Rosete, denominado "Filosofia e Crise". Como prometido naquele post, publico agora o texto na íntegra - para que vocês, leitores, reflitam acerca do emergir dos pensadores em tempos de crise. Boa leitura e reflexão! 

Filosofia e Crise


Democracias há onde o filósofo tal como o sociólogo, o antropólogo ou o psicólogo é chamado a pronunciar-se e a tomar posições; é-lhe reconhecido um estatuto e um potencial, ora, em terras lusitanas tal não é nítido, aqui é o erudito que recolhe à caverna, o incompreendido, o desajustado. De quem é a «culpa»?
    Sem dúvida que a presente conjuntura é desfavorável, desde logo pela massificação da comunicação ( tendo como pano de fundo a "aldeia global" ), onde impera todo uma lógica do sensacionalismo, aliada a uma silenciosa «hipoteca» de consciências, reflexo inevitável de uma vivência estereotipada onde só importa o palpável, o negociável, enfim, tudo o que é susceptível de cambio.
    Mas a «culpa» passa também pelo próprio profissional de filosofia que vê numa conduta hermética uma forma cómoda e segura de legitimação do seu profissionalismo, isto é, refugiando-se num discurso esotérico, encontra aí a sua própria tranquilidade e «redenção».

    Qual é afinal o lugar do profissional de filosofia e em última instancia, do filósofo?

    Vejamos em primeiro lugar o que ele tem sido; como se tem configurado a sua eclosão.
    Para mim é evidente: o filósofo tem surgido em toda a sua plenitude em épocas de crise, de esboroamento sócio - político, ora fazendo o balanço, ora apontando novos trilhos. A primeira via, tem sido ironicamente a mais seguida, pelo que diríamos tal como Hegel que, quando a filosofia chega com a sua «luz crepuscular», fá-lo na viragem do "acontecer", justamente quando a deliciosa febre da ruptura teve já o seu clímax; neste sentido é de todo verdadeiro que "quando as sombras da noite começam a cair é que levanta voo o pássaro de Minerva".
    Basta volver o olhar para a história e uma tal postura parecer-nos-à evidente, ou seja, a cada crise pertencerá inequivocamente um filósofo de maior ou menor envergadura, que lhe é directamente correspondente; o filósofo é de forma inequívoca um «homo crisis», senão vejamos: face a uma religião tacanha e anedótica, responderam as primeiras preocupações físicalistas dos pré - socráticos; a uma clima de guerra e de decadência moral e social, respondeu o humanismo incomodativo de Sócrates; a uma anarquia política, respondeu o rigorismo ético e abstracto de Platão; a uma dificuldade de articulação entre o legado pagão e o dogma cristão responde o intelectualismo refinado de toda uma idade média urbano - conventual; à barbárie da revolução francesa, respondem a ética universalista Kantiana e o círcularismo especulativo hegeliano; à alienação social decorrente da alienação económica, responde a dinâmica marxista; à crise de valores, responde a vertigem nietzschiana; nos nossos dias à viciação da praxis científica, respondem a terapia epistemológica e a combatividade ecológica.
    Neste quadro só uma preocupação deverá assistir ao filósofo: mais que associar-se a épocas de crise, procurar no marasmo que coabita a estabilidade político - social um aprofundamento do humano.
    Mas, como planear este aprofundamento? Que forma deverá adquirir nos actuais contornos? Eis pois o desafio em toda a sua extensão.
    É minha convicção que as verdades são pequenas e astutas como as lebres, como tal, o mundo e as democracias avançam cambaleando, e, sem especular acerca da racionalidade ou não da história, quero apesar de tudo acreditar na salubridade do seu devir e no valor do profissional de Filosofia.
    Possam pois haver condições favoráveis à Filosofia, esta saberá merecer o desafio a que tem pleno direito: devolver o humano ao humano sem quaisquer pudores.

J. Rosete


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